pela pista vazia
realização de Pablo García Canga
Espanha. 2022. 27 minutos.
em exibição até 7 de dezembro
Ana grava uma mensagem de áudio para um antigo amigo. Ela hesita. Quais palavras usar para fechar antigas feridas?
Os filmes das nossas vidas
No silêncio do pátio de um ateliê, uma jovem (Bruna Cusi) grava uma mensagem de áudio para um antigo amigo, com quem não fala há tempos. O que ela quer é lhe contar o que nunca contou, compartilhar o sentimento que a relação gerou nela, lamentar um passado, uma vida que não foi. Assim, ela tenta descrever com palavras um sentimento. Recorre a uma estratégia: evocar cenas do passado. O dia em que se conheceram, o dia em que ela o achou bonito pela primeira vez, o dia em que dançaram numa pista vazia e fizeram uma festa acontecer; quando os dois se olharam e a admiração mútua que existia provocava, dentro dela, algo de especial.
O filme é bem-sucedido no ponto em que a personagem interpretada por Cusi falha — e para ser justo, este texto também. Quando encontramos alguém cuja relação parece banhada por um sentimento misterioso, inefável, cuja presença é dotada de um excesso de sentido; o tipo de relação que permite o silêncio, a sensação de que não se está sozinho, de que dividimos o céu com alguém. Por isso, talvez, a dificuldade da personagem de descrever o que ela sentiu — trata-se de tentar explicar o silêncio com palavras. Mas o filme recorre também a outras estratégias.
Há um rigor, tudo parece perfeitamente encenado para acontecer ante a câmera: os cortes que vão se suceder, o texto, a movimentação da atriz. É como se houvesse uma cortina no início do filme, que agora foi aberta, e estamos diante de um palco, com uma intérprete que, em sua solidão, generosamente se expõe, compartilhando conosco seus lamentos, quase como uma performance musical de Billie Holiday — um trabalho formal, uma história que existe e não existe ao mesmo tempo, um corpo que, por trás de sua armadura, se conecta com o que é dito a ponto de vermos isso aparecer em sua presença física.
O filme nos permite ver o que a personagem tenta comunicar ao seu amigo. E permite justamente através dessas tentativas encenadas, das hesitações, de um olhar, do jeito como a atriz se mexe enquanto fala. Para resumir, e me arriscando a dizer que resumo todos os grandes filmes já feitos: um trabalho formal que revela um segredo.
Algumas obras a que este filme deve a existência
É possível que eu nunca tivesse concebido este meu filme, nem nenhum dos meus filmes anteriores ou posteriores, se não tivesse visto um filme de Rossellini chamado L’amore, ou melhor, a primeira parte de L’amore. L’amore é um filme composto por duas histórias, dois filmes de média duração, ambos estrelados por Anna Magnani. É, entre outras coisas, um filme que presta homenagem ao talento de Magnani. A primeira história é uma adaptação de uma peça de Jean Cocteau, La voix humaine, na qual uma mulher aguarda um telefonema de um homem que a deixou, e, quando o telefonema finalmente chega, ela fala com ele, embora nunca ouçamos a voz dele. Temos de adivinhar o que ele diz pelas reações dela. É como se a mulher estivesse lançando suas palavras ao vazio, sem ter certeza se serão recebidas. O telefone revela e acentua um espaço fora da tela que está sempre presente, em maior ou menor grau, quando falamos com outra pessoa. O que ele está pensando? Será que ele está mesmo ouvindo o que estou dizendo? Será que realmente nos entendemos? (Por outro lado, como Paulino Viota me apontou, A voz humana de Rossellini não faz sentido sem a segunda parte de L’amore, “Il miracolo”, que seria uma resposta indireta à primeira. Talvez eu devesse rever L’amore na íntegra e reconsiderar isso.)
Além disso, Por la pista vacía é um filme que deriva diretamente do roteiro de outro filme, Así vendrá la noche [Assim virá a noite], de Ángel Santos, que por sua vez surgiu do roteiro de outro filme de Ángel Santos, Así llegó la noche [Assim chegou a noite], que estreia este mês no Festival de Cinema de Gijón. Como Bresson relatou em uma de suas anotações: “Em Londres, uma gangue invade o cofre de uma joalheria e foge com colares de pérolas, anéis, ouro e pedras preciosas. Lá, eles também encontram a chave do cofre da joalheria vizinha, que também assaltam, e cujo cofre contém a chave do cofre de uma terceira joalheria”. Mas talvez fosse melhor contar isso pessoalmente.
Finalmente, talvez tudo isso também se origine do primeiro verso desta música.
Alguma obra com que este filme poderia fazer par
A verdade é que, embora eu geralmente goste de brincar de associar filmes uns aos outros, não consigo pensar em nenhum agora. Uma resposta óbvia seria o curta-metragem de Jean-Claude Guiguet La visiteuse, de que eu gosto muito e que tem um travelling que invejo, mas algo me faz preferir uma associação menos direta, quase o oposto. Um filme com menos palavras, talvez. Um filme mais aberto. Bem, um filme que sempre quis programar e que funcionaria bem como uma sessão dupla é Banka, de Heinosuke Gosho. Um melodrama muito musical e que funciona como uma memória.
Um fragmento do trabalho que fez este filme existir
Anexo o plano que enviei para a engenheira de som para que ela pudesse ter uma ideia de como iríamos filmar. Eu não via esse documento desde as filmagens. É bom ver a Bruna em mais um dia de trabalho. A essa altura, já tínhamos finalizado os detalhes da viagem e o cronograma. Trabalhamos três meio-períodos no pátio até termos certeza do que queríamos fazer. Era importante saber isso porque, devido à falta de recursos, tínhamos apenas um dia para filmar todo o curta.
Por la Pista Vacía; 27 minutos; Espanha; Colorido; 1,85; Roteiro e direção: Pablo García Canga; Diretor de fotografia: Hug Cirici; Montagem: Antonio Trullén Funcia; Som direto: Cora Delgado; Direção de arte: Oriol Hernando; Desenho de som: Cora Delgado; Pós-produção de som: Alejandra Molina; Produção: Alba Forn, Hug Cirici; Com: Bruna Cusí
apoiadores dos estranhos encontros
Dinah Oliveira, Julia de menezes nogueira, aloísio corrêa, Yasmin Vereen, izabela henriques, patrícia medeiros, arthur assumpção, maria tereza kauffman, Victor Feffer, Leo de Freitas Montagner