¿Dónde está Marie Anne?
realização de Yaela Gottlieb
argentina / peru. 2022. 6 minutos.
em exibição até 4 de outubro
Num mundo que promete a vida perfeita, Marie Anne Erize tenta escapar. Então, seu rastro se perde para sempre. Entre arquivos publicitários do Museo del Cine, Yaela Gottlieb encontra o único registro em movimento da atriz.
Em ¿Dónde Está Marie Anne?, a sucessão de imagens iniciais nos introduz a um universo de aparente futilidade, um American way of life estilizado, embalado pelo som incessante das ondas do mar. Essa cadência sonora, ao mesmo tempo hipnótica e opressiva, produz uma vertigem que captura o espectador e o mantém suspenso em uma temporalidade instável. O olhar se perde na sucessão acelerada de fragmentos, mas a expectativa permanece: algo precisa emergir desse fluxo.
A ruptura acontece de modo abrupto. O corte: violento e seco, desfaz a vertigem e interrompe a linearidade da imersão na obra. O que até então se apresentava como leveza cotidiana, jovens mulheres caminhando à beira da praia, acendendo um cigarro em gesto banal, revela-se como preâmbulo de um vazio incontornável: a ausência. O corte, aqui, não é mero recurso técnico, mas metáfora da própria lógica do desaparecimento forçado. Tal como a narrativa é interrompida, também a vida de Marie Anne Erize foi ceifada pela violência da ditadura argentina.
Sou levada a averiguar mais sobre a vida de Marie Anne Erize e descubro uma mulher que, além de ter trabalhado como modelo, foi militante dos Montoneros, organização de resistência à ditadura. Durante a década de 1970, realizou trabalhos sociais na cidade de San Juan. Em 1976, foi sequestrada por agentes da ditadura. Tinha apenas 24 anos. As últimas imagens dela em movimento são as que Yaela Gottlieb nos apresenta no filme.
Ao nomear a mulher desaparecida, a obra desloca o espectador do terreno da ficção para o campo da memória. Não se trata apenas de mostrar uma imagem, mas de inscrevê-la na história, contra o apagamento sistemático que o terrorismo de Estado produziu. Nomear Marie Anne é um gesto de resistência, uma prática política que reivindica justiça no interior mesmo da arte.
Nesse sentido, o filme não apenas evoca a experiência traumática do desaparecimento, mas propõe um exercício de memória coletiva. Ele nos convoca a atravessar a vertigem do espetáculo para reencontrar, no choque do corte, o rastro daquilo que foi violentamente subtraído. Lembrar é, aqui, um ato ético: recusar o esquecimento, restituir identidade, devolver humanidade às vítimas.
Obras que serviram de referência
Luz de verano (2019), de Andrés Di Tella, e Reconstruyen crimen de la modelo (1990), de Andrés Di Tella e Fabián Hofman. Ambos os trabalhos têm uma montagem que me interessava, tentam desvelar algo que está escondido. Eles se detêm, voltam para trás, desaceleram – movimentos que também tentei explorar no meu material.
Eu precisava desenterrar aquilo que se escondia nessas imagens publicitárias estranhamente sedutoras, criadas para produzir a ideia de um mundo perfeito… Como revelar essa dupla face que todo arquivo tem? Por um lado, existe aquilo que ele é, a razão pela qual foi criado; mas, com o passar do tempo, sentidos múltiplos se acrescentam. Como alcançá-los? Foi essa a premissa que assumi para encontrar a melhor montagem para o filme.
Filmes que poderiam ser exibidos em conjunto
Creio que escolheria algum filme de Tatiana Mazú González, pelo trabalho minucioso de desenterrar aquilo que está por trás de cada imagem, de cada paisagem, e isso de uma forma poética. Nessa mesma linha, poderia pensar também em Pirotecnia (Colômbia, 2019), de Federico Atehortúa, por colocar em xeque aquilo que acreditamos que vemos. Poderia seguir indefinidamente, inclusive nomeando alguns filmes pioneiros nessa abordagem, mas prefiro me ater ao contexto latino-americano.
Lembrança do processo de criação
Em 2021, fui convocada pelo Programa de Cinema da Universidad Torcuato Di Tella e do Museu Pablo Ducrós Hicken para realizar um curta-metragem. Recebi oito horas de vídeos publicitários recuperados pelo Museu para que fosse elaborado algo novo – a única orientação era: liberdade total. Eu não tinha muita informação sobre o material, a não ser o seu título e a marca à qual fazia referência. Tentei diferentes montagens: um falso faroeste, uma releitura de Jacques Tourneur ao estilo Guy Maddin, um compilado de embalagens… tudo parecia preservar a superficialidade inicial do material publicitário: a promessa de uma vida perfeita e a representação de uma cena ideal. Dei um google em cada um dos vídeos e em cada um dos nomes que apareciam nos créditos. Encontrei a história de Marie Anne, mas nenhum vídeo. Dei-me conta de que estava perante, talvez, o único registro em movimento ainda preservado dela. Como fazer para que esses escassos segundos em que ela aparece não acabem? Como trazê-la de volta?
Continuei a pesquisa. A história dela tem pontos de contato com a minha. Ambas chegamos a viver na Argentina, ambas trabalhamos nas Villas, ambas acreditávamos na possibilidade de construir um mundo melhor. O curta-metragem teria de ser sobre ela e para ela.
¿Dónde está Marie Anne?. 6 minutos; Argentina / Peru; Colorido; digital; Foundfootage realizado a partir de publicidades recuperados pelo Museu do Cinema de Buenos Aires dos anos 1976-1983.
apoiadores dos estranhos encontros
Pedro Faissol, Dinah Oliveira, Julia de menezes nogueira, aloísio corrêa, Yasmin Vereen, izabela henriques, patrícia medeiros, arthur assumpção, maria tereza kauffman